segunda-feira, 29 de setembro de 2014

"O conhecimento que não nos leva para além de nós mesmos é bem pior que a ignorância" ditado sufi

Mini conto, 

Era uma vez…

Um menino de uma tribo.

Ngozi entre muitos irmãos, das várias mulheres do seu pai, escolheu Mara filha da terceira mulher do seu pai, para com ela dividir o seu pequeno mundo.
Nesse mundo Ngozi tinha construído um círculo à sua volta. Lá dentro apenas entrava Mara a sua irmã. E alguns amigos imaginários. Parecia-se com todos. Nada os diferenciava. Pensavam e falavam da mesma maneira. Tinha tomado a decisão de não se confundir. Via-se reflectido naqueles seus amigos porque todos eram iguais.
Cada dia que se aproximava da prova de valentia e virilidade construía um muro mais alto. Não queria, não queria…«Ngozi, ( dizia-lhe um dos seus amigos), ao elevares o teu muro, cresces mais depressa. Deixa-te ficar apenas no teu círculo. Estás protegido por nós»
Ngozi isolava-se e cada dia estava mais taciturno. Mara era a única alegria da sua vida. Era uma menina radiosa, vibrante, cheia de vida, linda como o primeiro raio de sol que o despertava todas as manhãs, na imensa savana tão sua familiar.
-«Ngozi anda, vamos fugir!» Ngozi assustou-se. Fugir? Aquela menina não era daquela sua tribo…como podia pensar em fugir? «estás louca Mara? Então e as minhas obrigações? E as tuas?»
Rindo-se sem fim, Mara agarrou a mão do seu irmãozinho e puxou-o: «para já vamos fugir da aldeia. Os baobab estão cheios de frutos. Anda…»
De barriga cheia, deitados debaixo da árvore mais larga que conheciam, sagrada e bela, pensavam nas suas respectivas sortes…
«Mara a ti cabe-te ser escolhida e comprada por algum homem da tribo e viver debaixo das suas regras e obrigações, que inclui seres tratada como um pilão de amassar o milho. Uma vaca é tratada com maior respeito», dizia infeliz Ngozi... «Mas eu vou-te proteger sempre e se algum homem te tentar fazer mal, eu mato-o com a minha lança»!
Hihihihi ria-se Mara contente…« meu irmãozinho, tu? Não és capaz de matar ninguém, mas sei que me queres bem e que me vais sempre proteger. Prepara-te antes para a tua prova, tu sim tens um leão maior do que o meu para enfrentar e vencer. Estou preocupada por ti. Ao contrário do que te dizem os teus amigos, esses imaginários, tu devias sair, brincar com outros rapazes e preparar-te para a vida dura que vais ter : caçar, cruzar fronteiras, cuidar de várias mulheres... És tão frágil Ngozi, tão fechado…. Primeiro vais ter de matar um leão, com a tua lança, para provares a tua virilidade e isso parece-me tão improvável meu irmão… que vai ser de ti?...»
Se algum dia pudermos, fugimos, pensou Ngozi sem nada dizer. Tinha que pensar num plano…
Calaram-se e ficaram a pensar no destino que lhes cabia em sorte.
Ngozi adormeceu. Naquele momento não tinha medo, estava ali com Mara, fora dos limites da aldeia e nada de mal lhes podia acontecer. Os pais estavam nas suas rotinas diárias e eles pouco contavam para a vida da tribo.
Mara pegou na flecha do irmão e aventurou-se. Queria tanto quanto o irmão libertar-se daquele mundo de regras, obediências e obrigações. Por Ngozi e por si tinha de pensar num plano…
Caminhava sem olhar por onde ia. De repente estacou com um barulho quase imperceptível a ouvidos de quem não convivesse com os segredos da savana.
Voltou-se em direcção ao barulho, que vinha do sítio onde tinha deixado Ngozi adormecido. Procurando ser silenciosa, o que bem sabia com os seus 12 anos de treino nas brincadeiras, aproximava-se e o que viu deixou-a gelada.
Um leão, a poucos metros olhava para Ngozi parado. Preparando o salto.
Em poucos segundos, tantos quanto demora um pensamento a transformar-se em acção de sobrevivência, Mara agarrou a flecha e colocou-se em posição de disparar.
Ngozi tinha-lhe ensinado a arte para a qual se preparava há 14 anos. A sua prova de virilidade, de coragem e de força. Não podia dar tempo a que o leão se apercebesse dela.
Se hesitasse Ngozi morria e ela também. Àquela distância não costumava falhar nas árvores. Não podia falhar agora, pensou num último segundo.
Como um verdadeiro guerreiro, Mara puxou a flecha e disparou.
O leão deu um salto com a surpresa do embate e caiu ao lado de Ngozi. Mara a tremer de medo, correu a puxar o seu irmãozinho que estava acordado a chorar, com as mãos a cobrirem-lhe o rosto:
-Ngozi estás bem?
-Sim Mara, disse Ngozi por entre os soluços, que aconteceu?
Mara contou-lhe e abraçaram-se a chorar.
-Anda vamos voltar para a aldeia, contar que mataste um leão. Está aqui a prova. Vamos antes que o leão ferido se atire sobre nós…
-Mara minha irmãzinha, não vês que lhe acertaste no coração? Está morto, mas foste tu que o mataste, não eu.
-Mas a aldeia não sabe, só nós. E sabemos que tu não querias que isto acontecesse, mas tinhas de passar por esta prova. Anda, corre! Não vês que esta é a prova de que podemos fazer o que quisermos?
Correram de mãos dadas. De vez em quando olhavam para trás. O leão não tinha fugido. Mara acertara como só os grandes guerreiros, corajosos e viris conseguem. E salvara Ngozi.
Nessa noite a festa na aldeia foi rija. Celebrava-se a bravura de Ngozi com cantos, danças, comida e muita bebida. Ninguém estava mais contente que Mara. Ngozi pouco participava, mas como lhe era reconhecido um carácter fechado, ninguém prestou importância.
Ninguém o viu desaparecer da festa horas depois desta ter começado.
Ninguém o viu ir buscar Mara, com um pequeno saco, a flecha e alguma comida (que tinha roubado da festa) e, partirem da aldeia.
Prometera a Mara que a iria proteger da vida que lhe tinha cabido em sorte. Ela tinha-o protegido com a sua própria vida.
Cabia a Ngozi cumprir a sua parte da promessa de fugirem em busca da vida que queriam e não a que lhes era imposta.
Nessa madrugada, antes do sol de novo lhes desejar um bom dia, desapareciam por caminhos empoeirados, rumo a outros mundos. Nessa noite Ngozi quebrava o seu muro e abria o círculo. Outros amigos haveriam de entrar. Matara o seu leão.

Aquela era a casa de ambos. A família. O mundo que conheciam. A herança das suas vidas.


Mas não as suas fronteiras.

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