quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Infância, Contos da avuelita



Para a Alice e Amali,

Tomé, José António, Francisco, Clara, Shai, Carol, tinham ido visitar a avuelita e as primas para um longo dia de brincadeiras e jogos. 
Tinha chegado a hora do lanche. 

Sentados nos degraus da varanda, enquanto o sol se despedia do dia, bebiam sumo de cajú fresco, batata doce assada com pedaços de manga, salpicada com queijo fresco e menta e bolo de laranja. 

Ouviam a avuelita, que respondia à pergunta da Alice: Como eras em pequena nonna?

Para uma criança, os seus pais, avós e familiares nunca foram crianças. Conhecem-nos já adultos e no imaginário da criança, não imaginam que esses adultos também conheceram o mundo da infância. 
Para uma avó é fácil explicar. Está à beira de regressar ou já regressou a esse mundo misterioso.

Sem se fazer rogada a avuelita deu o braço à estória que se seguia:

-“Tens dez ideias a cada três segundos…tenho que ter sempre, a porta aberta para ti”…
Felizmente! Pensei eu quando ouvi isto de novo há poucos anos, já bastante crescida, mas nunca adulta. Tenho sorte, pensei, por não ter perdido com a idade a minha característica de infância. 

“Todas as crianças são assim,pensava eu nessa altura da infância. Falam sozinhas, têm amigos imaginários, invisíveis, com quem conversasm. Um mundo mágico. Às vezes uma sala cheia de amigos com todos a trocarem ideias”. Hoje tenho a certeza que todas as crianças são assim. 

Acredito que incentivando a magia no mundo da infância, desenvolveremos crianças mais inteligentes, capazes de lidar com as emoções, mais bondosas e empáticas com o mundo exterior. 

Em crianças somos mais inteligentes do que são os smartphones. Não precisamos do Google maps nem de GPS. 

No meu mundo mágico da infância, perdíamo-nos, andávamos à deriva, encontrávamo-nos, discutímos muito e ficávamo-nos em silêncio para nos ouvirmos. Eram tempos de magia. Só ou com amigos, imaginários ou não.

Acreditava em fadas, gnomos, animais que falavam. Dava aulas em voz alta para uma plateia vazia. Sem corpos físicos. Mas repletos de assistentes imaginários. Todos atentos ao que se passava ali. Quando nos cansávamos íamos comer pinhões, ou dançar. Ou ler juntos.

Presentes estavam as fadas, os gnomos, os animais, os amigos imaginários. 
As portas do roupeiro todas rabiscadas a giz, com frases que vinham dos meus amigos, que serviam de ponto de discussão e estudo, não incomodava os moradores da minha casa. 
Que incentivavam. Uma típica filha única, sem o ser, tem de desenvolver ainda com maior intensidade, o seu próprio mundo misterioso. Não, não era maluquinha nem doente. É o mundo da infância e da criança que em todos nós vive eternamente. 

Sim somos vulneráveis, sensíveis, frágeis, criativos, inseguros, crianças e isso não está imbuído em qualquer doença.

No silêncio do quarto, na quietude do rosto de criança que eu era, movimentava-se freneticamente o misterioso, os mistérios que eu não via e os que desconhecia. 

Ao redor da cama, distribuía livros. De fadas e estórias mágicas, de contos que me ligavam a outras pessoas sem fronteiras como eu, a mundos infinitos. 
Que me ligavam com um fio invisível, a outras estórias, outros mundos. Misteriosos, desconhecidos, invisíveis. Assim também julgo eu que nasceu, através dos livros, o conceito de internet.

Um mundo de infinitas janelas para mais estórias, mais perguntas, mais ideias. De repente descobria que o mundo misterioso que me rodeava era o que eu precisava, queria e iria descobrir ao longo da vida. Das fadas, aos gnomos, até aos homens. Quem somos…?

Estava nascida a minha curiosidade. Fazer perguntas, ter ideias novas, incluindo sobre novas dez perguntas que nasciam a cada três segundos, era a minha arte.

No Outono ia apanhar castanhas com todos os amigos que comparecessem. No tempo das pinhas, partia os pinhões, sentada numa pedra e comia até me cansar. Com os meus amigos. 
Ia fazendo perguntas e tendo ideias: “Tens dez ideias a cada três segundos” dizia-me o avô. 

Estava a transmitir as ideias que me chegavam dos amigos, fadas e gnomos e que tinha na minha rede de contactos. 
Eu era a porta-voz desse mundo. 

Hoje que tenho “mais passado”, e é lá que a minha memória e referências estão ancoradas, o silêncio diminui e ganho voz. 
Perdi espaço para me encontrar dentro desse mundo mágico, mas porque o tive, encontrei-me:nunca deixei de ser criança.

-O que sonhas como uma velha criança avuelita? Quis saber Amali

Todos pensavam que afinal eram muito parecidos. E claramente entendidos. Aquele era o mundo deles.

-Vou andar por aí, a terminar o que comecei, quando me aventurei nesse mundo mágico de curiosidade, incertezas, dúvidas, mistérios, perguntas e estórias.

Mesmo que a ubiquidade da maldade seja o ás de trunfo do mundo presente, eu tenho a semente da bondade colhida na minha ligação junto das fadas, dos gnomos e das fantasias dos meus amigos mágicos.E dos reais.

Muitos amigos estão grávidos e pariram crianças que são as minhas fadas,os meus gnomos, as minhas crianças reais. Vocês todos. 

Sonho para que não abandonem o mundo das fadas, da curiosidade, das perguntas, das descobertas e da criatividade. Da vulnerabilidade, da sensibilidade e da bondade.

Esse é o mundo que ainda hoje me habita, que me acompanha e orienta. A minha rede os meus pontos cardeais. Que quero perpetuar e ensinar, como eles ensinam o cosmos a seguir infinitamente. 
Sonho nunca deixar de colorir o meu mundo.

Meninos e meninas, agora venham daí ajudar-me a pintar o céu de todas as cores, concluiu a avuelita, distribuindo pincéis.

O sol, sentado no ocaso, tinha estado a ouvir a avuelita antes de se deitar. Os olhos fecharam-se e ele deixou-se embalar pelo doce movimento do mundo mágico das crianças a pintar deixando um rasto de laranja,cinza e rosa…

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