quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Vida e medo- Peça de teatro

Peça de teatro. Um diálogo entre dois personagens: O medo e a vida. Num dia solarengo, uma casa pequena, uma pequena varanda, uns degraus. Medo e vida vinham a atravessar a rua dirigindo-se a casa encontrando-se lado a lado. Fingiam não se ver.

Confundiam o dia e a noite. Sobrepunham-se sem limites. Eram de ambos e pertenciam-se. Mas recusavam sentar-se a beber uma bebida fresca e olharem-se nos olhos. Na casa que era de ambos.
Cruzavam-se com demasiada frequência, desde tempos imemoriais, mas o medo do confronto fazia-os olharem-se de soslaio, baixar a cabeça e atravessar com o olhar posto no chão. Fingindo não se verem. Durante uma vida inteira.

Naquele dia a vida, sentindo-se vulnerável mas determinada a não lhe dar mais poder, reuniu as suas forças, indo buscar energia ao seu amigo sol; sem medo do medo dirigiu-se-lhe convidando-o:

-senta-te comigo medo, vou-te dizer o que penso de ti. Vou-te dizer porque me assustas, porque me tens assustado e me deixaste marcas. Quero dizer-te que me vou perder de ti… (quase sufocava nas próprias palavras que a assustavam. O medo tinha uma força que nem ele próprio sabia, julgava a vida…).

Sentado ao seu lado, o medo, com o semblante arrogante, carregado de desprezo aproximou-se quase se colando ao ouvido da vida. Conhecia a sua força. Essa sua consciência fazia-o desafiar a vida em permanência. Poucos o ganhavam. Poucos o superavam.

“O que será que tu vida medrosa me queres dizer?” Soprando-lhe ao ouvido, enquanto se sentava observando o dia luminoso, com as cores garridas que a natureza oferecia para que a vida se inspirasse a chamá-lo.
“Que corajosa. Tão habituada estava a ser dominada por ele… No fundo a vida não sabia nada de nada…”

-Ouve-me bem medo, começou a vida ganhando coragem, inspirada pela voz que ouvia vinda do coração: a criatividade e paixão são os únicos estados naturais que quero conhecer na vida que me acontece. Farei para que aconteçam. Que sejam também o meu epitáfio quando a minha irmã morte me vier buscar. Do passado todos trazemos pérolas: as feridas cicatrizadas que foram cobertas com amor. São a referência que hoje devem dar lugar à criação de novas asas. São as únicas asas que quero que me acorrentem. Tudo o resto são hobbys, que levam ao cansaço e ao aborrecimento, que por sua vez levam à morte…da criatividade e da paixão. À morte da minha vida.

-Mas para que queres tudo isso? Qual a razão de criares? Irás a algum lado com essa imaginação? A criar? Isso é só poesia…ria-se o medo com escárnio

- entende-me medo, quando nada temos, mais criativos nos fazemos. O nada faz nascer a paixão por criar qualquer coisa. Mesmo criando um erro. Já não me assusta errar. Torna-me mais humana. Mais igual a todos. Nesse estádio sinto-me a única parte de um todo imenso. Ofereço as asas que a minha criatividade me exige. As asas com que nascemos todos. Que por tua culpa e pela repressão não abrimos.
Quando uma criança começa a mentir aos pais: nasceu um contador de estórias. Um bom pai anota e incentiva. Ensina as diferenças entre imaginação e realidade mas não mata a criatividade. Nem deixa que um muro comece a nascer. Entre a criatividade e o mundo assustador que cá fora a castra. Isso és tu que fazes…
Quando uma criança começa a pintar as paredes da sala e do quarto, um bom pai coloca telas e papel pardo pela casa e oferece canetas…
Todos sabemos o bem que sabe estar à beira mar a construir figuras na areia. As crianças não querem saber se o mar as leva na sua espuma. Um bom pai incentiva e colabora. Para que o medo de errar e começar de novo seja limpo pelo sal do mar. Mas tu chegas e destróis esses sonhos…
As crianças atiram-se sem medo. Não sabem que não sabem gatinhar, andar, correr. Fazem-no por intuição. Por instinto. Isso sou eu, a vida. Depois vens tu…interferir…
Tu medo, com a tua arrogância matas a criatividade, porque questionas a razão de se querer muito fazer uma coisa, e incentivas o medo de errar. Não queres que se deitem abaixo os muros onde nos refugiamos. Por ti medo…

-Tudo isso é muito bonito, mas o meu papel é esse. Vou continuar a estar atento à tua imaginação e fazer o que tenho de fazer: incutir-te medo. No fundo sou teu aliado ao bloquear-te: desafio-te a saíres desse muro. Devias agradecer-me…

-A partir de hoje, vou ser o melhor acompanhante da minha imaginação. Vou seguir o fluxo da inspiração. Aceito o desafio.
Hoje vou inventar estórias como se fossem verdadeiras. Com personagens como eu, ou com seres que nunca vi e nem sei se existem. Como uma criança com amigos imaginários. E oferecê-las para tocar outras imaginações. E voarmos juntas.
Hoje vou tocar piano como se fosse uma criança a aprender. Como uma criança, não sei tocar, mas na minha imaginação terei uma sonata de Mozart. Hoje dançarei mesmo não tendo ritmo. Como uma criança, na minha imaginação, sou capaz de desempenhar de olhos fechados a melhor coreografia de Isadora Duncan. Como uma criança, hoje vou pintar todas as folhas que me apetecer mesmo que não saiba fazer mais que riscos abstractos. Na minha imaginação terei trazido Velásquez à vida.
Eu vida, vou dar vida à criatividade que nasce da junção entre a intuição e o racional. Num lugar desconhecido. Vinda do nada e que se transforma.

-Porquê? Para quê? Quis saber desdenhoso o medo, já com algum medo de perder protagonismo.

-Porque neste mundo profundamente doente, feito por doentes terminais de uma epidemia desconhecida, talvez consigamos a cura através da criatividade. Não a matando. Deixando que as nossas crianças sigam o fluxo da capacidade de criação com que nascem. Na educação em casa e no ensino nas escolas.
A criatividade é ditada pelos padrões culturais de cada era. Talvez porque a matámos aos nossos pais, aos nossos filhos, esta era, está entregue a “artistas” psicopatas sem coração. Sem emoções. Sem sentimentos. Sem criatividade. Sem paixões. A quem castraram a criatividade. A quem deixaram que o muro da revolta e da maldade fosse crescendo à sua volta. Porque tu medo, te interpuseste. És o meu maior obstáculo! Sim, és!

-Eu controlo! Basta olhar para os jovens doentes à nossa volta, o que fazem de absurdo para se integrarem, aos políticos cuja única ambição e riqueza é querer poder e dinheiro, aos gangs violentos, à exploração dos recursos da natureza como se fossem infinitos e como se ela precisasse de vocês; aos seres que disparam e matam indiscriminadamente, aos que em nome de um Deus qualquer, deixaram que lhes escapasse o valor da vida…às tragédias que mulheres e crianças sofrem…e tantas outras absurdas doenças humanas…
Sabes a estória do Pedro e do Lobo? O medo levantou-se fazendo menção de se ir embora. Estava farto daquela vida que o começava a assustar…sabes a estória, continuou? Tanto medo por algo que não acontece, até que acontece…Ou então, medo para dominar e ter-vos debaixo de um controlo apertado tão simplesmente. É importante incutir-vos medo. Permanentemente. Vou continuar aí!

Soltou uma enorme gargalhada que deixou um profundo sabor amargo e triste na vida…de desamparo…

Para a vida a decisão estava tomada, com a convicção que só as crianças têm perante obstáculos: enfrentam-nos sem medo. Nem imaginam que a mão dos pais as está a amparar. A vida era agora uma nova criança. Determinada a ser finalmente quem tinha de ser. Alguma mão a iria proteger. A mão da confiança em si mesma.

-Vou apelar a que se rompa o ciclo afirmou a vida! A destruir os muros. A escravidão que nos deixa prostrados e rendidos a ti. Fazendo qualquer coisa criativa. A minha vida vale mais do que o teu domínio. Devemos começar já hoje a abraçar a criatividade. Vou começar já hoje a fazer qualquer coisa para criar. Criar para viver. Amanhã vou acordar a sentir que essa é razão de existir: vivemos para criar. No dever de nos encontrarmos, a criatividade ganhou todos os direitos da minha vida. Sem mais perguntar: “para que faço isto?”. Não vou voltar mais ao teu caminho medo. Não te tenho mais medo.

-Então e se não te der dinheiro? Nem prémios? Nem sucesso, nem exposição? Nem fama? Ou alimento? Ou poder? De que te serve a criatividade? Qual a razão para o fazeres? És ridícula, imatura, tontinha!!

-Não me demoves. Não tenho nada a perder. Aliás nunca tive, desde que tenho vida. Mas tive medo. Em quantidade suficiente. Chegaste ao fim na minha.
Faço-o para a minha evolução. Por ela tenho a obrigação, o dever e o direito de criar. E tu medo, já não preciso de ti nem como aliado. Menos ainda como meu obstáculo. Cresci. Tornei-me de novo uma criança.
Vai, segue a tua estrada. Desejo que tenhas tu também uma re-evolução criativa…sem medo de ti próprio…

Por fim, olhavam-se de frente…sem medo. Cada um cumpria a sua missão.
Vida e medo confrontavam-se, com a capacidade que vem unicamente da força criativa.
Finalmente, cheia de vida, levantava-se para mergulhar sem medo na água transparente da sua vida.


Fim

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